Saudade do amigo Celso Blues Boy
Na capa, fotaça de Maurício Valladares
Na íntegra, o album SOM NA GUITARRA, de 1984
Blues Boy toca a guitarra de B.B. King
Eu o conheci em outubro de 1981, quando montava a rádio Fluminense FM que estava com uma programação de teste no ar. A portaria do prédio interfonou para a sala da produção (eu dividia com Sergio Vasconcellos, Amaury Santos, Maurício Valladares e Alex Mariano, todos nós trabalhando com um único toca-discos), dizendo que “o senhor Celso Carvalho quer falar com você”. Sem saber quem era, mandei subir.
Tenho dedicado os últimos dias ao estudo profundo, mas
muitíssimo profundo do blues em função de um projeto maravilhoso que estou
envolvido. Desde pequeno o blues me fascina, especialmente o de Chicago à bordo
de figuraças como Muddy Waters, Willie
Dixon e tantos outros que acabaram parindo lendas como Jimi
Hendrix, Jimmy Page, Jeff Beck, Eric Clapton.
O chamado blues inglês é uma variável desconcertante (não
encontro outra palavra) do blues de Chicago que trouxe ao mundo, também, Keith
Richards, Ron Wood, Rory Gallagher, enfim, eu passaria o dia aqui citando.
Quero falar do maior bluesman brasileiro. Um amigo
chamado Celso Blues Boy, morto precocemente em agosto de 2012 de câncer. Amigos
comuns que conviveram com ele no final, dizem que o músico não acreditava na
existência doença e sequer se tratou. Aliás, fazer amigos era uma outra arte do generoso, altruísta e sempre ético Celso Blues Boy que teve na muito querida Maria Juçá, imperatriz do Circo Voador, uma fiel confidente e no mago do jornalismo, Jamari França, um ombro amigo.
Eu o conheci em outubro de 1981, quando montava a rádio Fluminense FM que estava com uma programação de teste no ar. A portaria do prédio interfonou para a sala da produção (eu dividia com Sergio Vasconcellos, Amaury Santos, Maurício Valladares e Alex Mariano, todos nós trabalhando com um único toca-discos), dizendo que “o senhor Celso Carvalho quer falar com você”. Sem saber quem era, mandei subir.
Celso, tímido, muito tímido entrou na sala num daqueles
raros momentos em que eu estava sozinho. Acompanhado de seu amigo, fiel
escudeiro e super-empresário Lourival de Almeida Neto. Tempo: Lourival, estou precisando falar URGENTE com
você! Não consigo te achar! Me mande um e-mail: luizantoniomello@gmail.com.
Celso entrou com uma fitinha K7, com gravações quase
caseiras de umas três músicas. Fiz o que não podia fazer: coloquei a fita para
tocar. Por que não podia fazer: e se fosse ruim? Se não valesse nada? Com que
cara ele e eu ficaríamos quando viesse a fatídica pergunta “vai dar pra rolar
na programação da rádio?” e eu respondesse “não vai dar não, meu chapa”, como
sempre fiz e faço, com muita franqueza. Só que o som de Celso era demais!
Eu ainda não tinha ouvido uma guitarra de blues tão
forte, estrondosa, potente e visceral como a dele. Claro, era blues rock, mas
comentei que “você tem muito do blues de Chicago” e ele, visivelmente atônito,
respondeu sem a menor cerimônia “sei lá, meu blues é de Copacabana mesmo”.
O encontro selou a nossa amizade. Mais: eu disse que
Celso Carvalho podia ser nome de tudo “até de cavalo do Jóquei “(ele deu uma
gargalhada), menos de músico de blues. Foi quando o Lourival, empolgado, olhou
para ele e quase gritou “não te disse? Eu não te disse?” Celso mudou para Blues
Boy ali mesmo, na hora. Raspamos o Carvalho da fitinha K7 e escrevemos Blues Boy
em cima, homenagem dele a seu segundo ídolo maior, Blues Boy King, o B.B. King.
O primeiro ídolo? Eric Clapton.
Para refrescar a memória dos fãs daquela época e informar
a quem está chegando agora, fui lá no Wikipédia:
Celso
Blues Boy (nascido Celso Ricardo Furtado de Carvalho, Rio de Janeiro, 5 de
janeiro de 1956 — Joinville, 6 de agosto de 2012) foi um cantor, compositor e
guitarrista brasileiro.
Começou
a tocar profissionalmente na década de 1970, acompanhando Raul Seixas e Sá e
Guarabyra. Montou a banda Legião Estrangeira em 1976, com a qual se apresentava
em bares e casas de show. Passou a ser mais conhecido a partir de 1980, quando
mandou uma fita para a Rádio Fluminense, no Rio, voltada para o repertório
roqueiro.
Gravou
o primeiro disco em 1984, "Som na Guitarra", que incluía seu maior
sucesso: "Aumenta que Isso Aí É Rock'n Roll". Um dos primeiros a
cantar blues em português, escolheu o nome artístico em homenagem ao ídolo B.
B. King, um dos pais do gênero, com quem também tocou na década de 1980. No fim
da sua vida morava em Joinville, Santa Catarina.
Foi
um ilustre torcedor do Vasco da Gama, tendo participado do Megashow
comemorativo dos 113 anos do clube, onde tocou em sua guitarra o Hino do Club
de Regatas Vasco da Gama.
Discografia:
1984
- Som na Guitarra.
1986
- Marginal Blues
1987
- Celso Blues Boy 3
1988
- Blues Forever
1989
- Quando a noite cai
1991
- Ao vivo - Celso Blues Boy
1996
- Indiana Blues
1998
- Nuvens Negras Choram
1999
- Vagabundo errante
2008
- Quem foi que falou que acabou o rock n' roll? (DVD ao vivo, Gravado no Circo
Voador)
2011 - Por um Monte de Cerveja (CD)
2011 - Por um Monte de Cerveja (CD)
Como Blues Boy Celso explodiu rápido na Fluminense FM e,
em pouco tempo, tornou-se um herói dos ouvintes. Pelo menos uma vez por mês ele
ia até a rádio para ouvir opiniões. Muitas vezes conversava com ouvintes no
telefone, enfim, adorava os seus fãs. Em contrapartida eu ia vê-lo em minha
terceira casa (Circo Voador, já que a primeira era a Rádio Fluminense FM e a segunda
era onde morava) e até dei uns esporros nele por conta do excesso de cerveja e da
tradicional golfada que ele dava atrás do palco em pleno show.
Ele sempre concordava comigo e na última vez que dei-lhe
um toque ele respondeu “É Lêi – ele me chamada de É Lêi, L.A. em inglês – realmente
eu tenho que parar de vomitar...acho que parar de vomitar eu consigo, mas de
tomar cerveja, fumar e azarar mulher na plateia...amigo, me perdôe, mas isso eu
não vai dar não.” Caímos na gargalhada e nunca mais toquei no assunto. E, para
delírio da plateia, Celso continuou bebendo cerveja e vomitando em todos os
shows.
Em 1984 procurei o amigo, guru e padrinho de estúdio
Roberto Menescal, na época diretor da Polygram (hoje gravadora Universal
Music). Minha ideia era produzir o primeiro álbum de Celso Blues Boy. Menescal
aceitou no ato, mas com uma condição: a Polygram contrataria a empresa que eu
tive até 1989 com Zeca Mocarzel e a nossa empresa contrataria o Celso. Assim
foi feito. Blues Boy assinou com a nossa Provence, que por sua vez assinou com
a Polygram.
Uma semana depois Celso estava ensaiando em um estúdio em
Botafogo. Eu ia lá assistir. Ele não lia nada de música, fazia tudo na
intuição, no faro, no instinto de um verdadeiro bluesman. No terceiro dia senti
falta de um percussionista. Constrangido, Celso me levou para um canto e
confidenciou "É Lêi, o cara foi em cana...” Como assim? “Não pagou a
pensão, a ex-mulher engaiolou ele ali na Voluntários da Pátria, quando estava
vindo pra cá”.
Em 15 dias entrávamos no estúdio 1 da Polygram (24
canais), acompanhando o Menescal. Digo que ele é meu padrinho de estúdio porque
ele entrou, me apresentou ao engenheiro, aos dois técnicos, me mostrou a mesa
de dezenas e dezenas de botões, luzes, indicadores, disse “deita e rola, meu
amigo” e saiu. Não entrei em pânico porque não nasci num estúdio porque o
destino colocou um hospital no caminho de minha mãe.
Passamos três meses no estúdio 1 da Polygram, em sessões
de seis horas por dia. Todos foram fundamentais no trabalho, em especial o
Zeca, o Lourival e o Assistente de Produção Artística, super pianista e
organista e Luiz Eduardo Farah, peça chave no sucesso do disco.
Expliquei a Celso que gosto de gravar com uma “cama” de
violões com cordas de nylon. Ele gostou da ideia, mas não tínhamos um violão.
Bom, hoje posso dizer. Chico Buarque gravada no mesmo estúdio em outro horário
e, por isso, afanamos emprestado o violão dele que Blues Boy esmerilhou fazendo
as bases.
Não satisfeito, Celso descobriu uma garrafa de vinho (acho que era
Michel Arnaud) que pertencia ao Chico e disse que ia dar um gole. Fingi que não ouvi e
continuei passando o som do órgão Hammond com Luiz Eduardo Farah. De fato, a
garrafa de Chico Buarque já estava aberta, mas Celso teve a delicadeza de empurrar
a rolha para dentro. Subimos até o Menescal para pedir que descontasse o valor
(em valores de hoje, algo em torno de 500 dólares!!!!!) de nossa produção. Menescal disse “toquem o
disco, não esquentem a cabeça”.
Eu e Celso conversamos muito e fechamos um pacto: fazer
um disco de blues rascante, sujo, marginal, porém perfeito. Por isso, não
arrisquei e consegui dois amplificadores Marshall, um Fender e um Roland (Celso
queria um desses) para as guitarras, mais um Ampeg para o baixo. A bateria, da
própria Polygram, era uma maravilhosa Ludwig, idêntica a primeira de John
Bonham, do Zeppelin..
A seleção dos músicos para a gravação deixei com o Celso
porque ele sabia melhor do que ninguém quem era quem. De cara, encantado com a
genialidade de Luiz Eduardo Farah, além de assistente de produção ele foi
promovido a pianista e órgão. Para o baixo, Celso convidou Milton Botelho;
Antonio Scobino, bateria, Carlitos, gaita; Marcelo Scobino; backing vocals e guitarra. Blues Boy cantou (muitas vezes dobrando a voz), tocou violão
e guitarras.
Quando fui mixar o disco estava estafado. Foram oito
semanas de exaustivo trabalho, com um artista fantástico, pontual, disciplinado,
que sabia tudo de blues, de voz, de guitarra. A foto da capa, de meu ultra-amigo
Maurício Valladares (que ilustra esse texto), deu ao disco uma cara de blues que nenhum outro, em
qualquer época, conseguiu.
Celso ficou muito feliz com o disco. Quando levei uma
fita para a reunião de avaliação de Menescal e a cúpula da Polygram, nervosíssimo,
expliquei que tínhamos feito um disco sujo de propósito, que eu assumia os
riscos, etc etc etc. Toda a Polygram aplaudiu “Som na Guitarra” do grande Celso
Blues Boy.
Hoje, com saudade do meu amigo, leio que “Som na Guitarra”
é considerado o melhor disco de blues gravado no Brasil. Orgulho. Orgulho de um
músico de Copacabana, exímio compositor, guitarrista dos melhores que já ouvi
no mundo e a certeza que o Blues Boy ainda tinha muita guitarra para mostrar.
Orgulho de um bando de pessoas dispostas a desempenar o mundo através da
música.
Quase conseguimos. É isso aí.
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