Viciado em si mesmo, o ególatra vampiriza as ideias
Tempos atrás encontrei um ególatra na rua. Eu estava
andando rápido pelo centro do Rio em direção a uma livraria e o ególatra vinha no
sentido contrário. Vinha sozinho, é claro, porque ególatras são seres
socialmente insulares. Tentei escapar, mas quase fui atropelado por um táxi.
Caí no alçapão. O cara me encheu o saco por exatos 53 minutos de monólogo, já
que ególatras não conversam, eles ditam regras, procedimentos, enfim, montam seu
diálogo interno.
Contou uma longa história que na verdade pertencia a
outra pessoa. Disse que fez um vitorioso projeto na área ambiental que todo
mundo (ou quase todo mundo) sabe que é de autoria de outro. Só que essa outra
pessoa morreu e o ególatra simplesmente vampirizou o projeto. Assumiu como dele,
patologicamente convencido que é mesmo dele e até andou tentando vender para
algumas empresas que, alertadas, não fecharam o negócio. Continua andando por
aí, sempre babando ovos, puxando sacos dos poderosos, milionários, de
preferência corruptos. Como diz um amigo meu “essa laia é como tatu. É só ver
um buraco que entra”.
Ele se convidou para tomar um café e já que eu estava
junto acabei indo. Estávamos na rua do Ouvidor onde gosto de tomar café em
silêncio, imaginando Machado de Assis, sempre muito discreto e tímido, sussurrando
com seus contemporâneos: Artur de Azevedo, João do Rio e, quem sabe, Euclides
da Cunha. Mas o ególatra não permite que
façamos silêncio. Falando (de si) sem parar, papos envolvendo delirantes
milhões de dólares, ele pediu o café, pediu o adoçante, pingou na minha xícara,
mas eu estava tão absorto diante daquele espetáculo imbecil e calhorda que
deixei rolar. Para o ególatra não existe tu-eles-nós-vós-eles. Só existe o EU.
“Eu fui ver Roger Waters no Morumbi, ele disse. Fiquei na
primeira fila e durante vários minutos percebi que Roger tocava olhando para
mim. Já aconteceu isso com você?”, perguntou misturando o cafezinho. Eu disse
que não. Ele fez uma cara de “só comigo porque sou f*$@#&*%oda, isso não é
para qualquer um”. O pior da história foi quando ele me confidenciou: “muito
entre nós porque, você sabe, sou low profile, mas Roger Waters me procurou e
pediu que eu ajudasse na escolha do repertório do show”. Doença? Não.
Transtorno mental? Não. É mau caratismo mesmo.
Eu, eu, eu. “Eu fiz, eu comi, eu fui, eu voltei, eu
decidi, eu...cof! cof! cof!”. O ególatra engasgou com o café quente, teve uma
crise de tosse e golfou na calçada. O dono do bar, grosseiro, não fez por
menos: “pô, isso aqui não é lugar de bêbado”. O ególatra não reagiu. Estava
transtornado com o vexame. O vexame de ser gente. Gente comum com crise de refluxo.
Determinou que eu pagasse os cafés e saiu correndo,
literalmente. O dono do bar olhou pra mim com uma cara esquisita, resmungou, eu
disse “o cara passou mal, mas não estava bêbado”, o homem deu de ombros e iniciei
o caminho de volta a praça 15 para embarcar no catamarã.
Pensei no ególatra. O que é pior? Sofrer de baixa estima,
se achar um cocô, um réptil e mesmo assim brilhar, fazer coisas, acontecer ou
se achar um Nero, um clone dos outros, um estelionatário existencial, uma versão
bípede de Zeus e não fazer coisa alguma? Afinal, 100% dos ególatras que conheço
estão existencialmente falidos. Mulher nenhuma atura e, no trabalho, são logo despachados
porque rapidamente assumem a postura de “donos do estabelecimento”, quando na
verdade são empregados. Ahhhh, pobre de ti se “xingar” um ególatra de
empregado. Ele vai quebrar o espelho. Na sua cara.
Atravessando a Baía de Guanabara pensei no sujeito. Não,
nada de “coitado, é uma vítima de si mesmo”. Ao longo da vida prejudicou muita
gente. Roubou propriedades intelectuais, surrou mulheres, bateu em homens
velhos, fez qualquer negócio (de preferência os mais imundos) para chegar onde
acha que chegou. Naquele momento, em algum lugar do Rio de Janeiro, um homem
perigoso, alma perigosa, apaixonado crônico por si mesmo, procurava a próxima
vítima.
Quem?
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