Como um beduíno alucinado de calor

Como um beduíno debaixo de um sol que parecia um fogareiro Jacaré (vintage) aceso nos ombros, semanas atrás passei parte de uma tarde perambulando por repartições públicas num safari, caçando documentos. "Não é aqui, o senhor por favor vá até..." foi a informação que mais ouvi, perdido naquela macarronada de papel, com os bolsos da calça cheio de protocolos.

Em uma das filas, uma moça pacientemente esperava. Fila média. Nem longa, nem curta. Calor, muito calor. Para não perder mais tempo, perguntei "a senhora poderia me informar se é aqui que...". Ela sequer se moveu. Parecia o monolito do filme “2001, uma Odisseia no Espaço”, do genial e saudoso Stanley Kubrick.
Será que ela achou que era uma azaração barata? Insisti. Cutuquei o ombro, ela levou um susto. Foi quando percebi que estava com aquelas duas minicarrapetas enterradas nos ouvidos e ouvia música em seu smartphone. Ela se desculpou e tal, disse que eu estava na repartição errada e já na calçada lembrei que a música tem a capacidade de nos arrancar dos mais tediosos ambientes.
Lembrei também que já tentei usar um aparelhinho desses, mas não me entendi com aqueles fones minúsculos. Ia insistir, mas graças a anos de rock, blues e arredores, meu ouvido esquerdo está meio detonado. Minha médica disse para eu não usar essas carrapetas e evitar shows. Ok doutora, as carrapetas eu enterro, mas shows de jeito nenhum. Como viver sem ouvir um milhão de decibéis de boa música eventualmente?

Nada resolvi em meu rali pelas repartições, mas não perdi a paciência. Peguei um táxi. O motorista estava sintonizado no rádio de comunicação com a sede da cooperativa. Ao mesmo tempo mantinha o rádio do carro sintonizado em uma FM, falava no celular e mexia no GPS instalado sobre o painel.
No cinto de segurança notei que estava pousado um pen drive, aquela sensacional engenhoca que o usuário espeta no computador chupa os dados que deseja e vai embora.
Imaginei Machado de Assis no mundo de hoje. Você anda pelas ruas e o que mais vê são os fones nos ouvidos da multidão, ou celulares, ou aqueles radinhos de comunicação (extremamente irritantes para quem está por perto), enfim, não sei o que seria de Bentinho e Capitu nesses tempos pós-modernos.
Ainda no táxi lembrei de uma pesquisa feita há alguns anos por uma rede de TV norte-americana que queria saber qual é o país mais curioso em se tratando de novas tecnologias. O Brasil ficou em segundo lugar, perdendo apenas para a Austrália. É essa curiosidade que faz do Brasil um país criativo e movido a esperança, mesmo com a tela da TV marrom de lava jato e similares. Somos íntimos das novidades e não resistimos, sequer, quando alguém aparece num sinal de trânsito vendendo uma espécie de raquete de tênis que na verdade é um mata-mosquitos elétrico ou coisa parecida.
Quando um sociólogo (cujo nome saiu para comprar uma minitevê que é computador ao mesmo tempo) disse que somos um povo "novidadeiro", inventou a palavra certa. Há quanto tempo o gás natural surgiu no mercado? Pronto: todo mundo está aderindo. 100% dos táxis rodam com GNV. É impressionante a velocidade com que as "coisas modernas" são absorvidas por nós graças a nossa curiosidade e enorme fome de informações.
Já repararam como as bancas de jornal se transformaram em shoppings? Compra-se pouco jornais (a internet mamou o público que era do papel) mas muitos, DVDs, CDs, incenso, flores e, naturalmente, as boas novidades disponíveis como carro em miniatura, lanterna alimentada a dínamo, figurinhas. É por essas e por outras que o Brasil fascina o planeta.

Com relação aos tais documentos que originaram o meu safari e esse texto, saíram sim. Depois de 10 dias úteis, mais três filas, 37 flanelinhas e muito, mas muito calor.

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