Paul McCartney: “Lançamos Sgt. Pepper´s na sexta e domingo Jimi Hendrix tocou o tema no Saville Theatre em Londres; os Beatles chegaram a um ponto em que implodiram - todos tinham dinheiro e fama e, de vez em quando, era inevitável que nos irritássemos uns com os outros.”
Tempos
estranhos os de hoje, levemente boçais. Estou certo de que se
escrevesse sua obra hoje, Anais Nin (1903-1977) seria linchada pelo
moralismo reinante neste século 21, açoitado e submetido a praga do
PC, Politicamente Correto. Por exemplo, Barão e Mathilde,
personagens de seu clássico “Delta de Venus” coletânea de
contos eróticos escritos em 1940 mas só publicada em 1978, seriam
esquartejados, fatiados e os pedaços pendurados por aí. Por que?
Anais era corajosa, sensual e livre e deixou seus personagens fazerem
o que quisessem. Como acho que nesses tempos do famigerado PC, o
álbum Sgt. Peppers Lonely Heartys Club Band não teria existido.
Incorreto demais. Fora dos padrões, da caretice, muito mundano.
A
conversa franca de Paul McCartney com Anthony Decurtis, da Rolling
Stone americana, quatro anos atrás, toca em temas que ele pouco ou
nunca comentou em profundidade como o fim do grupo, a amizade
retomada com Lennon, a saudade de Harrison. Leia:
Como
foi o "verão do Amor" (1967) para você?
Legal
pra caramba. Tínhamos acabado de decidir que suspenderíamos as
turnês porque já não estava mais valendo muito a pena. Parecia que
não estávamos progredindo, o público continuava berrando, mas a
gente se encheu daquilo. Tínhamos a ideia de fazer um disco que
sairia em turnê por nós.
Isso
veio de uma história que tínhamos lido a respeito do Cadillac de
ouro do Elvis fazendo turnê. Achamos que era uma ideia maravilhosa:
ele não sai em turnê, só manda o Cadillac. Fantástico! Então,
pensamos: "Vamos despachar um disco". Passamos mais tempo
em estúdio e o resultado foi Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band
(1967). Então, foi maravilhoso. Estávamos amadurecendo? Não sei.
Olhando
em retrospecto agora, éramos praticamente crianças, apesar de nos
sentirmos muito adultos. Tanta coisa tinha acontecido com tanta
rapidez desde a viagem dos Beatles para os Estados Unidos em 1964. Em
essência, aqueles três anos foram a diferença entre "I Want
to Hold Your Hand" e "Sgt. Pepper's." Os tempos
estavam mudando, como senhor Dylan disse. Só estávamos seguindo
nossos instintos, mas havia um grande arroubo de energia, as ideias
vinham rápidas e consistentes.
Todos
os tipos de ideias novas - artísticas, políticas, musicais.
Começamos a escrever coisas que eram diferentes porque nossas
conversas, nossos pensamentos e nossos sentimentos eram diferentes.
Estávamos passando muito mais tempo longe da estrada, com outros
artistas, e isso nos permitiu investigar outras coisas.
Tínhamos
muitos amigos no mundo da música e no mundo da arte, e havia uma
grande fertilização cruzada. Foi uma época ótima para
experimentar coisas e tudo isso penetrou na nossa música e no nosso
estilo de vida.
Eu
me lembro do impacto de Sgt. Pepper's como algo instantâneo e
onipresente, tocando em toda casa noturna, toda loja de roupa, toda
loja de discos.
Você
fazia ideia de que teria esse tipo de efeito?
Foi
ótimo, para falar a verdade. Como tínhamos parado de excursionar, a
mídia começava a sentir que as coisas estavam calmas demais, o que
criou um vácuo, de modo que puderam falar mal de nós. Diziam: "Ah,
a fonte secou". Mas nós sabíamos que não tinha secado.
Sabíamos o que estávamos fazendo e sabíamos que nossa fonte estava
longe de secar.
Na
verdade, o oposto estava acontecendo - vivíamos uma enorme explosão
de forças criativas. Nós pressentimos isso. Realmente não
comentamos o assunto com muita gente. Tocávamos uma demo aqui, outra
ali [para os amigos] e tal, mas o mundo de maneira geral não sabia
de nada.
O
que alguns críticos comentavam era "ah, eles estão acabados".
Enquanto isso, estávamos lá trabalhando com alegria, como os Sete
Anões - "Trabalho, trabalho, trabalho, trabalho, trabalho,
trabalho, trabalho!" [risos]. Estávamos nos divertindo muito,
obviamente, montando essa coisa.
Daí,
quando saiu, foi fantástico. Naquela época, costumávamos lançar
[álbuns] na sexta-feira, e aquele fim de semana foi uma coisa. Eu me
lembro de ter recebido telegramas que diziam coisas como "vida
longa a Sgt. Pepper's!". Esse era o sentimento geral, e era
maravilhoso.
Naquele
domingo Jimi Hendrix tocaria no Saville Theatre no West End de
Londres, e ele abriu o show com o tema de Sgt. Pepper's. Cara, o
disco estava mesmo em todo lugar! E é claro que nós só ficamos
surfando naquela onda artística. Foi bem bacana exercer tanta
influência assim.
Como
eu disse, era verão, e o sol brilhava e lá estávamos todos nós,
no maior astral [risos]! Eu me sinto muito privilegiado por ter
vivido aquilo, em primeiro lugar e, em segundo, por ter sido o
epicentro dos acontecimentos.
Deve
ter sido uma sensação muito estranha - passar por mudanças enormes
e, simultaneamente, gerar mudanças similares para milhões de outras
pessoas.
Foi
sobrenatural. Nós tínhamos nos acostumado com uma parte disso
simplesmente por sermos os Beatles. Até "I Want to Hold Your
Hand" tinha deixado as pessoas loucas. Mas em 67 a coisa passava
para outro nível. Estávamos entrando no coração e na mente de
todos.
Parecia
muito que Sgt. Pepper's fazia parte do sentimento daquela época em
que, de algum modo, tudo iria se transformar, que nada jamais
voltaria a ser como antes.
É
engraçado, conheço muita gente que, depois dos anos 60, teve uma
sensação de decepção que nunca passou. Eu pessoalmente achava
que, ao passo que tudo estava mudando, não necessariamente
significava que tudo mudaria. Nós tínhamos longas discussões a
respeito de como um dia as pessoas da nossa geração se tornariam
primeiros-ministros e seria bem sobrenatural [para eles] o fato de
terem sido afetados por esse período.
Mas,
ao mesmo tempo, éramos realistas, e pensávamos "é, mas vão
continuar sendo políticos". Dava para saber que tudo que estava
acontecendo no mundo mudaria a ordem das coisas em alguns aspectos,
mas não em todos. E isso está provado pelos nossos líderes atuais.
Eles continuam presos aos anos 40 ou algo assim.
Houve
algum acontecimento específico que fez com que você achasse que os
anos 60 não cumpririam suas promessas?
Suponho
que preciso considerar o rompimento dos Beatles como o momento mais
sombrio. Os Beatles chegaram a um ponto em que implodiram - todos
tinham dinheiro e fama e, de vez em quando, era inevitável que nos
irritássemos uns com os outros.
Eu
tinha conduzido a dança um pouco em Sgt. Pepper's. Para mim, o
título e a ideia toda foi inspirada pela época e pela fertilização
cruzada com os outros artistas. Queria que fosse algo do tipo "uau,
cada um de nós tem sua lista de heróis [na capa] e vamos assumir
estes alter egos. Seremos pessoas novas fazendo este disco, e podemos
mais ou menos viver nestes corpos novos e fazer um álbum como se
fôssemos outra banda". Aquilo foi libertador.
Mas,
depois disso, não dava para sentir que era possível seguir em
frente como aquela outra banda. Você inevitavelmente voltava à
terra, fazia parte dos Beatles.
E
foi aí que os problemas começaram...
Foi
quando começamos a discutir assuntos comerciais, principalmente com
o advento de Allen Klein - ou "um certo empresário
norte-americano", ou seja lá como somos obrigados a nos referir
a ele. Deixemos para o departamento jurídico resolver. As conversas
passaram a ser assim: "Ah, que merda, vamos ter mesmo que pensar
sobre isso agora ou perderemos tudo?". E isso causou um racha
tremendo.
Você
acabou processando os outros Beatles.
Foi
o pior momento da minha vida, quando me informaram que não poderia
me opor a esse tal de Klein, esse "suposto empresário
norte-americano". Como ele não era uma das partes de nenhum dos
nossos acordos, precisei brigar contra os outros três caras. Foi uma
situação com a qual me debati durante meses. Ou era "não, não
brigue com esses caras e perca tudo para todo o sempre" ou
"brigue com esses caras e salve tudo". Foi um dilema. No
final, pensei "acho que eles não sabem o que estão fazendo,
estão cometendo um erro pavoroso". Então eu, de fato, briguei
no Tribunal Superior e venci, por sorte.
Isso
criou um estigma terrível para mim, como sabia que criaria - não
tinha entrado naquilo de bobo. Sabia qual seria o preço. Mas achei
que, no fim, as pessoas descobririam que tinha razão. E foi
gratificante quando todos os caras, no final, piscaram para mim e
disseram: "Foi bom você ter feito aquilo". Até Yoko [Ono]
reconheceu isso. Mas foi uma coisa horrorosa de se viver. Foi quando
o sonho se desfez para mim.
Houve
um ponto em que você sentiu que, apesar da dissolução da banda,
seria capaz de seguir em frente e continuar a se divertir?
Fazer
o álbum McCartney (1970) foi bom para mim nesse aspecto, porque
realmente retornei às raízes. Eu me senti bem, e isso é bom. Até
hoje, as pessoas reparam naquele álbum. Com freqüência acontece
com os artistas e os músicos - eu ia dizer especialmente, mas acho
que está mais para igualmente - de o trabalho ser aquilo que faz
você se compreender.
A
música é especialmente boa para isso, é uma boa terapia. Estava
passando pela coisa terrível de perder a amizade daqueles meus
camaradas da vida toda, e para quê? Bom, a mim parecia que o motivo
era tentar salvar a vida deles. Aliás, não existiria uma
[gravadora] Apple para estar em litígio com a Apple de Steve Jobs -
e não existe mesmo, falando nisso, já foi tudo resolvido -, mas não
existiria uma Apple Records hoje. Tudo teria desaparecido; a coisa
toda simplesmente não existiria.
Não
haveria nenhum show em Las Vegas, não haveria nenhuma destas coisas
que agora estão aí tão gloriosas se não tivesse tomado aquela
atitude. Mas foi uma decisão dura de verdade. Foi uma daquelas
coisas que exigem terapia depois, e para mim, voltar à música foi
essa terapia. E, é claro, com a enorme ajuda de Linda. Ela foi uma
das grandes responsáveis por me fazer voltar à vida e seguir em
frente. Ela era um bastão de força naquele momento. Isso e produzir
música fizeram com que atravessasse aquele período.
Você,
George e Ringo puderam desfrutar os ressurgimentos dos Beatles. John,
é claro, morreu antes de boa parte disso acontecer e George também
se foi.
Esta
é a pior parte de ficar adulto. Você perde amigos, é inevitável.
Não é exatamente uma surpresa, mas é terrível. É muito triste.
Conhecia John intimamente há tanto tempo. Sempre me admiro com o
fato de eu ter sido o cara que se sentava com John para escrever
todas aquelas coisas. Éramos só ele e eu em uma sala e isso era bem
especial. Então, perdê-lo foi horrível.
E
foi especialmente triste porque tínhamos superado a desavença dos
Beatles. Apesar de ele estar morando em Nova York, nós conversávamos
com bastante regularidade. Simplesmente conversávamos sobre coisas
cotidianas - sobre o filho dele, Sean, e sobre a vida em geral, sobre
os pães que ele assava. Trocávamos receitas de pão, era ótimo.
Então, simplesmente foi uma tragédia horrível ele ter sido
arrancado daquele jeito.
No
caso de George, foi igualmente trágico. Eram meninos tão lindos,
sabe? [Ele faz uma pausa, e sua voz treme] George era simplesmente um
sujeito ótimo. Ele era um garotinho que eu conheci em Speke,
Liverpool, só um garotinho que entrou no meu ônibus. Eu subi no
ponto anterior ao dele, ele entrou e nós começamos a conversar
sobre guitarras e rock'n'roll. Depois, quando estávamos procurando
um guitarrista, e eu mencionei o nome dele a John, George se juntou
ao grupo. E daí passou a ser apenas o sábio George. Ele era um
sujeito lindo que não aguentava gente burra. Era uma alma muito
linda. Nem me deixe começar, cara. É um horror ter perdido aqueles
caras. Mas ser adulto é uma verdade terrível.
Você
tem ideia do que continua a tocar as pessoas com os Beatles depois de
todos esses anos?
Acho
que, basicamente, é a magia. Os Beatles eram mágicos. Para mim, a
vida é um campo de energia, um punhado de moléculas. E essas
moléculas específicas se formaram para que aqueles quatro caras
virassem os Beatles e fizessem todo aquele trabalho. Preciso pensar
que foi algo metafísico. Uma coisa que deve ser considerada mágica.
Estou sendo muito extravagante?
Se
você quiser ser prático, acho que as músicas eram muito bem
estruturadas. Quando as canto atualmente em shows, penso "isso
aí é bom, é sim. Que verso bom. Ah, entendi!". É uma
redescoberta. Você simplesmente lembra "ah, foi por isso que
fiz assim". Então, elas também têm uma força física, é
trabalho bem-feito.
Você
teve papel importantíssimo depois dos ataques de 11 de setembro,
organizando o Concerto para a Cidade de Nova York e ajudando a
reconstruir a confiança da cidade. Mas muita coisa aconteceu para
complicar nossa noção do que houve naquele dia. Quando você pensa
em 11 de setembro hoje, o que lhe vem à mente?
Bom,
tenho minhas lembranças pessoais de estar no [aeroporto de Nova
York] JFK e de ver a fumaça das torres gêmeas. O aeroporto fechou,
nosso voo foi cancelado, fomos para Long Island, ouvimos o noticiário
e assistimos a TV. E depois pensei em fazer meu próprio concerto,
mas tudo culminou no Concerto para Nova York, que foi ótimo, porque
muita gente queria fazer alguma coisa.
Foi
ótimo fazer parte daquilo - ajudar os norte-americanos em
particular, mas o mundo de maneira geral, a colocar seus sentimentos
em algum lugar. A oportunidade perdida foi que as pessoas ficaram com
um enorme sentimento de solidariedade em relação ao povo americano,
e as ações políticas que se seguiram a 11 de setembro
desperdiçaram a oportunidade. Foi como se alguém no playground
tivesse apanhado, mas não sabia quem tinha batido, e por isso
resolveu descontar na pessoa mais próxima - e isso se transformou no
Iraque. A agenda política é a culpada.
Olhando
para a frente, quais são as principais questões que se colocam
agora?
Fazer
algum avanço em direção à paz mundial. Seria ótimo se as pessoas
com diferenças no mundo hoje percebessem que não existem diferenças
- é um campo de energia. Precisamos da mesma velha coisa de sempre:
paz e amor. Não sendo frívolo, mas esse continua sendo o grande
objetivo. Bom, e vocês aí precisam de um novo líder [risos]! Quer
dizer, isso ajudaria.
Nem
brinque...
O
ambiente é uma realidade. Algumas pessoas me dizem "há tantas
causas, não sei quais apoiar". Minas terrestres, os maus-tratos
com animais, só para mencionar duas pelas quais me interesso. É
como se considerassem este o problema: "Qual causa apoiar?".
Eu respondo: "Não entre em pânico, apenas escolha uma que o
agrade e vá em frente. Todas estão conectadas". Mas eu sou
otimista, tem muita gente bacana por aí. No momento, temos
montículos de terra. E tudo bem. Isso é bom. Mas precisamos que se
transformem em uma montanha. Tem muita gente inteligente por aí,
mas, infelizmente, também tem um monte de imbecis. Mas o meu
otimismo me leva a torcer para que os inteligentes construam a
montanha.
E
qual você gostaria que fosse seu legado pessoal?
Sempre
que me perguntavam como eu gostaria de ser lembrado, respondia "com
um sorriso". Mas gostaria que as pessoas entendessem o que eu
fiz e pensassem que há uma enorme força naquilo. Gostaria que as
pessoas pensassem que uma parte daquilo chega a ser demoníaco de tão
forte. Isso me bastaria.
Comentários
Postar um comentário
Opinião não é palavrão. A sua é fundamental para este blog.
A Comunicação é uma via de mão dupla.