Relógio Biológico
São exatamente 2 e 14 da madrugada quando acordo mansamente,
sem sobressaltos. Como se fosse seis da manhã para um triatleta. Rondo pela
casa, ligo a TV e compro um travesseiro num programa de vendas pelo
telefone.
Segundo o anúncio, o tal travesseiro é um bálsamo de
espuma, capaz de corrigir todos os problemas de coluna. O locutor diz que com
esse travesseiro temos um sonho “reparador”. Só não prometeu que acordamos ao
som de canários belgas porque a empresa fica em São Paulo. Garantiu que quem
não ficasse satisfeito com o travesseiro teria seu dinheiro de volta.
Os caras são craques. Duas e 14 de um dia de semana é o
momento ideal para veicular um anúncio de travesseiro. Liguei, passei o número
do cartão de crédito e a mocinha encrencou. Queria colocar Niterói como cidade
do interior do estado, o que significava que eu teria que buscar a encomenda no
correio.
Expliquei a paulistinha que Niterói fica, de barca, a
oito quilômetros do centro do Rio. Ela não entendeu, coitadinha, mas acabei
comprando o travesseiro assim mesmo. Fui buscar na agência de correios mais
próxima, que nunca é próxima, quando chegar.
Fui até a varanda (essa noite foi em Itapu, anos 1990)
e reguei as plantas. Estão bonitas depois que comecei a usar o fertilizante
10-10-10. Aproveitei e fiz um pouco de xixi nelas. Dizem que faz bem. A mim
faz. Gosto de sentir o xixi batendo na terra, produzindo um aroma de Mauá,
Lumiar, São Pedro da Serra, Macaé de Cima.
Tem gente que fica muito angustiada quando acorda no
chamado “meio da noite”. Como para mim é rotina, não sinto nada. Apenas a calma
da madrugada, telefones mudos, e-mail calado, tanto que já escrevi até aqui sem
interrupção.
Já li e ouvi muito sobre o chamado relógio biológico. Aparentemente durmo mal, mas uma vez li numa revista de ante sala que o tipo de sono que tenho se chama “flash”. Durmo e acordo várias vezes. De fato não é tão bom quanto o sono sem escalas, aquele que você deita a meia noite e acorda as oito na mesma posição.
Mas o fato das comunicações estarem a disposição de
madrugada me trouxe esse vício. Posso dar um giro pela internet sem ser
importunado, sapatear nos satélites, conversar com o Congo. De madrugada tenho
a sensação de que posso fazer tudo porque tudo funciona.
Meu relógio biológico é oportunista e prático. Em geral
durmo cedo sexta e sábado para atravessar o dia seguinte na praia. E praia vou
o ano inteiro porque concluí que não existem praias feias com chuva, com tempo
nublado ou em plena tempestade. As praias são lindas de qualquer jeito.
Na praia de Itaipu quando chove e o vento traz aquela
bruma branca ela parece com a costa da Escócia, que conheço via cinema. Nos
dias frios, de céu azul profundo, lembra a Indonésia. Já sob densa tempestade
lembra a capa de “Love Over Gold”, um dos grandes discos do Dire Straits. É por
isso que tenho certeza de que Itaipu é a mais gostosa das filhas de Ryan.
Não sei se o fato de trabalhar 13 horas por dia
interfere no meu relógio biológico. Há quem diga que isso é estresse. Só que eu
nunca estou estressado; eu sou estressado.
Uma vez disseram que sou masoquista, que gasto muita
energia, etc. Só que, em 1985, experimentei ficar sem fazer nada durante três
meses. Larguei tudo. Em menos de 20 dias estava de volta ao jornal, de joelhos,
pedindo perdão.
Dormia o dia inteiro, comia pouco, tinha sonhos melancólicos, que depressão! Isso sim é masoquismo. No dia em que levantei para voltar ao jornal, fui fazer a barba e vi, no espelho, que estava com aquele semblante típico dos “à toas”. O suor cheira a naftalina, a cobertor das Casas Pernambucanas.
É evidente que não pretendo fazer apologia do sono
“flash”, da popular e temida insônia. José Maria Monteiro de Barros (saudade
desse meu amigo) me fez observar com calma aves e mamíferos. Fora as criaturas
da noite, todos se recolhem no crepúsculo e se levantam na alvorada. Leio numa
revista que os primeiros homens dormiam cedo e acordavam cedo. O que me
assustou no texto foi a média de vida deles: 16 anos.
Essa lenda de relógio biológico só deve ser terrível
para as pessoas que não gostam de dormir de dia ou sofrem amargamente com a
solidão. Quem vira uma noite, no início da carreira, tem que se habituar com
dois sons altamente depressivos: 1) Caminhão de leite; 2) Canto dos pardais e
bentevis. Já quem convive mal com o dia e ama a noite é obrigado a engolir
outros dois sons, também tristíssimos, de fim de tarde: 1) Canto de cigarra; 2)
Sirene de obra informando que o acabou o expediente. É horrível.
Já tentei acertar meu relógio biológico para ficar mais
próximo da lânguida rotina da humanidade. De 1974 a 1976 trabalhei no horário
das 5 da manhã ao meio dia. Rádio tem dessas coisas. Uma ótima oportunidade
para acertar o tal relógio. Não deu. Chegava em casa, tomava um banho, almoçava
e dormia até as seis da tarde. A noite ia para a gandaia, ou para a faculdade,
que na verdade eram a mesma coisa.
Mas pouca coisa foi pior do que uma noite em que
acordei as 3 horas numa pousada na serra da Bocaina, sem luz, sem livros (ler à
luz de velas é terrível) e, ainda por cima, chovendo. Confesso que sofri. Sofri
mais ainda com o barulho de um rio que me deixou alucinado, com uma estúpida
vontade de desligá-lo. Não tem jeito. Sou bicho do mar mesmo.
Em suma, o relógio biológico não é atômico e muito
menos Rolex. O meu é um paraguaio, desses de camelô. E com licença que já são
quatro da matina e preciso rever “O Resgate do Soldado Ryan” no DVD. O
"meu" filme.
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