Meu sedã japonês é inspiração até para pesadelo
Esta noite sonhei com ele. Como manda a tradição, foi um
pesadelo já que há muitos e muitos anos não lembro de ter tido um sonho, digamos,
normal. Só pesadelos. Eu estava tendo a primeira sessão de análise e, no final,
o analista pediu meu sedã japonês emprestado por uma semana para fazer uma
viagem. Por alguma razão não consegui negar. Ele pediu, por favor, que eu
combinasse onde deixar o carro com a sua irmã, que tinha um quiosque na praia
de Charitas, onde os quiosques são lixo a céu aberto mas, misteriosamente,
ninguém (nem o Judiciário) consegue mexer nos quiosqueiros.
Eu e Odara fomos lá. Eram duas as irmãs do analista, ansiosas
com a chegada do meu sedã. Eu apenas recomendei que usassem gasolina aditivada
V-Power, da Shell, porque o sedã era japonês mesmo, importado de lá. Eu tinha
que deixar o carro rápido porque havia uma sessão com o psicanalista meia hora depois
e o trânsito de Niterói, também em pesadelos, estava um caos. Apesar de não precisar
passar pela rua Alvares de Azevedo, em Icaraí, a mais engarrafada do Brasil. De
6 da manhã a meia noite parada por falta de guardas.
Saí de lá reclamando com Odara. No fundo eu estava
indignado, coração pesado, fulo da vida, mas por alguma razão não pude negar o
pedido. Aí você, leitor, pensa “foi quando você acordou”. Nada disso. Emendei
em mais dois pesadelos cotidianos sinistros.
A história. O sedã japonês é verde escuro e estava num
canto da vitrine da concessionária. Zero quilômetro. Tinha chegado do Japão há
três meses, temporada no porto, depósito, pátio, documentação, lavagem,
revisão, transporte, vitrine.
Entrei disposto a comprar um SUV 4X4, para
viajar pelo Pantanal e fazer uma perna para o deserto de Atacama, Chile. O
problema seria vencer a preguiça. Eu sabia que carros japoneses e alemães não
dão problema, são resistentes, honestos, apreciam a longevidade. Ia fechar negócio
com o SUV. O vendedor foi lá atrás pegar o manual e outros detalhes quando meu
olhar bateu no sedã japonês.
Levantei, olhei a frente, traseira, laterais. Abri o
capô, motor, 16 válvulas, bloco em alumínio, muitos cavalos de potência, câmbio
automático e, o mais importante, carro japonês, que não dá trabalho e, ainda
por cima, da mesma marca do SUV.
Mudei de ideia. Em vez do SUV comprei o sedã japonês. No
dia seguinte sai da loja, pus um CD no Kenwood de fábrica e zarpei. Fui até
Barra do Sana e desci pela Serramar (na época lama pura) e retornei como se
tivesse ido a esquina beber uma água mineral. Na altura de São Gonçalo,
violento temporal. Deixei a BR e decidi ir por dentro da cidade. Mau negócio.
Ruas transformadas em rios de esgoto, carros boiando enguiçados. E o sedã
japonês passou. Com água na porta, muitas vezes boiando, sequer falhou. Dias
depois, outro toró no Ingá, bairro de Niterói. Água na porta, o sedã boiou de
novo e chegou a virar ao contrário. Mas não pifou.
De dois em dois anos pensava em trocar o sedã japonês por
um mais novo, mas me perguntava para que, se o carro até alma de jipe tinha.
Num lugar chamado Engenho do Mato as vezes eu matava saudade dos ralis fazendo
trilha com o sedã no lamaçal, alta velocidade. Impressionante. O motor do sedã
japonês era o mesmo do SUV que eu iria comprar. Enfrentou alagamentos na chuva,
lama, neve, areia, como um autêntico SUV, sem dar um espirro. Um único espirro.
E foi assim durante 17 anos. Eu e o sedã japonês já não
sabíamos mais quem era quem. Ele é quase único porque só foi importado durante
um ano. Era raro. Naquele carro aconteceu de tudo, absolutamente tudo.
Histórias que se fossem transformadas em livros lotariam a biblioteca nacional.
Fiel, o sedã jamais enguiçou, jamais furou um pneu, jamais...jamais traiu o seu
DNA japonês.
Mas um dia...bem um dia surgiu um outro japonês. Novo.
Também resistente, também bem falado, também fiel, também...foi quando vendi o
sedã japonês. Fiquei arrasado mas graças ao novo dono, cujos olhos saltaram
de paixão logo no primeiro contato, tive certeza que o meu grande amigo
continuaria em boas mãos.
Meu irmão, Fernando de Farias Mello, me disse domingo que
viu o sedã passar por ele, lindo, reluzente. A todo instante alguém diz “eu te
vi na rua tal”, “vi seu carro naquela praça”, “vi...”. O sedã foi meu embaixador
por 17 anos.
O novo japonês parece ter gostado de mim. Começamos a
construir uma história bacana, leve, rápida, precisa, estável. Sem problemas.
Como os carros japoneses e alemães. Mas, a saudade do sedã eventualmente me
pega. Como há 15 dias eu o vi com o novo dono, parado num sinal, a saudade
rasgou. Decidi que, ano que vem, vou tentar recomprá-lo só para tê-lo por
perto.
Só que o novo dono me disse que...não vende de jeito
nenhum e até pensa comprar um outro, idêntico. Como são raros, ele está correndo
atrás.